domingo, 20 de julho de 2008

O Coringa


A primeira impressão é a de que se trata de mais um filme de ação. Não é. Ou melhor, não é só isso. A despeito das cenas extraordinariamente barulhentas, com explosões intermináveis, perseguições de carros, tiros, brigas, torturas (a fórmula ideal para os filmes que nada têm a dizer), Batman – O Cavaleiro das Trevas é um filme altamente reflexivo, que traz às telas a discussão de quão tênue é a linha divisória entre o bem e o mal: Batman não é o homem perfeito, incorruptível, que se propõe a lutar contra o mal; nem tampouco o Coringa é o seu contrário. E a confusão fica evidente no fim do filme: afinal, quem triunfou?

O vilão construído por Heath Ledger é, como ele próprio se define, um “agente do caos”. O Coringa nos leva a pensar a respeito da existência de uma espécie de mal sem motivação ou objetivo aparente: da mesma forma que existe um amor incondicional, parece que há também seu oposto, um sadismo que é um fim em si próprio. O Coringa não quer dominar o mundo, ter dinheiro, fama ou poder: quer apenas se divertir explodindo coisas. E tal qual o bem, que precisa do mal para justificar sua existência, ele precisa do bem para ser mal. Parace lógico, não? E Ledger incorpora essas contradições com primazia.

Nelson Rodrigues já havia percebido quão dificultoso é prestar culto aos gênios que ainda vivem. Sem recorrer a subterfúgios, o dramaturgo confessou, em suas memórias, a inveja que sentia de Guimarães Rosa. Narrou com audácia a exultação que teve quando se deu a morte do escritor mineiro: poderia, enfim, reconhecer-lhe a genialidade. Nelson diagnosticara quão cômodo - e prazeroso - é reverenciar o gênio morto.

A interpretação de Heath Ledger parece prenunciar sua morte. É unânime o sentimento de que ali se deu uma atuação para ser lembrada como umas das mais impressionantes da história do cinema. Mas quanto dessa veneração é fruto da tendência que temos para adular cadáveres? Jamais saberemos.

***

Morreu, aos 101 anos, Dercy Gonçalves. Há pelo menos 15 anos eu não ouvia o nome da mulher na Rede Globo de Televisão. Há pouco, Alexandre Garcia anunciava no Jornal Nacional a morte da “atriz que dedicou um século ao humor”, “um símbolo da irreverência”. É mais um titã que elevamos à morada dos deuses. Com acerto? Sei lá eu. E o que importa?
Na verdade, o que me arrepia é saber que o óbito de Dercy é a prova inconteste da existência da morte. Se ela - até ela! - morreu, é bom nos conformarmos: morreremos.

Um comentário:

Unknown disse...

Sempre acreditei que o mito morre cedo... Mas saí do cinema com a pergunta: Afinal, quem venceu? Só queria que soubesse que seu texto é perfeito e me apropriei dele, espero que não se importe!