sábado, 27 de dezembro de 2008

Grampeando Maquiavel


A civilização não é produto da natureza, um fato consumado desde sempre, um acidente, como muitas vezes nos parece. Antes, é um edifício em construção perpétua, que exige daqueles que a veneram e a desejam um cultivo vigilante, uma profissão de fé. Afinal, a ordem inercial das coisas sempre nos conduz à barbárie. Da mesma forma é o Estado Democrático de Direito: a familiaridade às vezes traz consigo o desprezo, dando a impressão de que essa coisa sempre esteve aí, como um vaso velho que vive despercebido no canto da sala, e só damos conta de sua existência quando um ser atabalhoado o transforma em cacos.

Pensei nisso enquanto assistia a uma entrevista do delegado Protógenes Queiroz, pai biológico da Operação Satiagraha. Tenho pra mim que apesar de sempre manifestar uma espécie de messianismo populista – que inevitavelmente tende à demagogia - trata-se de um homem bem intencionado (aquela espécie que povoa o inferno). Quer botar na cadeia os larápios de ternos bem cortados, figurões cuja prisão contraria a afamada filosofia popular segundo a qual “rico não vai em cana”. Na República de Protógenes vai, ô se vai.

E o que há de errado com isso? Não é louvável a democratização do xilindró para todos os públicos, independentemente da cor, credo ou classe social? Tutty Vasques, jornalista-humorista do Estadão, resumiu o espírito do problema: rico algemado é tão engraçado quanto pobre andando de limousine. Na mosca! Celso Pitta algemado de pijamas faz o povão vibrar; traz-nos a impressão de que nesse país não tem nhem-nhem-nhem, não tem carteirada, aqui não se admite o “você sabe com quem está falando?”. É a judicialização da vingança social: no Brasil, os ricos também choram.

O problema é que o preço pago para satisfazer essa ânsia por “isonomia” tem custado caro demais. O delegado justiceiro disse, na entrevista citada acima, que não vê problema nenhum em chamar e tratar como “bandido” seus investigados. Indagado se o método não extrapolaria suas funções, já que “julgar” é um procedimento que cabe unicamente à justiça, o homem foi categórico: A população não se incomoda com isso; a população se incomoda com crianças que moram sob viadutos, se incomoda com a fome. Viva!, ele fala em nome do “povo” – esse conceito sociologicamente indefinido e indefinível.

Será que vale a pena solapar o Estado de Direito (nem que seja só um pouquinho) para encurralar Daniel Dantas? Será que vale a pena lançar mão de procedimentos, digamos, ilegais para prender aquele que seria o maior corrupto e corruptor do país? A fala de Protógenes dá a entender que sim. Segundo a lógica do delegado, a arapongagem esporádica, o atropelo momentâneo da lei, o jeitinho, seriam preços acessíveis ante o benefício alcançado. Afinal, o “povo” anseia por isso.

Suponho, no entanto, que o preço seja alto demais. Temo que uma vez preso Daniel Dantas, as mazelas da vida desse “povo” que, supostamente, almeja que ele mofe atrás das grades – custe o que custar - continuará rigorosamente a mesma: a corrupção e a impunidade continuarão a fazer parte do panteão da história nacional. Disse “a mesma” e já me corrijo: ficará pior, uma vez que agora convivemos com alguém que, revestido com os “poderes do povo”, tem licença irrestrita para legislar, dizer quem são os bandidos e quem são os mocinhos. E os tratar como tais.

Justiça seja feita: Protógenes é um homem de bem, mas desconfio que ele tenha grampeado Maquiavel.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A teimosia divina

Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. (II Cor. 5:18-20)

Aqui e ali se ouvem severas críticas ao chamado apelo comercial do Natal. Mais do que isso: com aquele ar de descaso, muitos afirmam que se trata de uma comemoração atrelada a um consumismo exacerbado, na qual importa consumir, consumir, comprar e comprar. Embora seja meio difícil negar tal realidade, há uma peculiaridade que o distingue das demais datas comemorativas.

A que me refiro?

Refiro-me ao fato de que, em geral, as pessoas estão mais inclinadas a pensar nos outros. Parece-me haver uma nítida diferença entre aquela compulsão neurótica por consumir e ter e o pretenso consumismo natalino. Quando saio para comprar um presente, tenho necessariamente de pensar naqueles a quem pretendo presentear; tenho de imaginar o que poderia agradar, o que poderia ser útil, o que, enfim, poderia trazer um pouquinho de alegria. E é, sim, muito bom dar presentes. Ganhar também, claro.

Estou dizendo isso porque essa tradição, esse hábito, esse costume, seja lá como queremos chamar, revela algo sobre a natureza humana. O homem não é um fim em si mesmo. Ninguém é auto-suficiente, ninguém pode dizer que se basta. Temos sempre a necessidade de ou nos remeter a outrem, ou de nos sentir importante para alguém. É nesse contato com as pessoas que podemos vivenciar experiências que nos ajudam a compreender que a vida tem sentido. Viktor E. Frankl chamava a essa característica humana de estar sempre dirigido a algo ou alguém fora de si de autotranscência. Para Frankl, isso é o que torna um homem um homem.

Quem, então, poderia afirmar-se como absoluto, auto-suficiente? Quem poderia, pois, bastar-se a si mesmo? A única resposta que me ocorre é que Deus é auto-suficiente e se basta. Mas, ao contrário do que se poderia esperar, Deus se apresenta aos homens e os convida para relacionarem-se Consigo. Os homens, por sua vez, ora se aproximam dele, ora o renegam; ora o obedecem, ora se rebelam; ora são capazes de sofrer por fidelidade a Ele, ora são titubeantes. Enfim, quem ler os relatos bíblicos pode perceber que estes tratam basicamente dos desvios do homem e a insistência divina de se apresentar e de providenciar a reconciliação.

No Natal, celebramos o maior dos presentes divinos. A sinalização de que, apesar dos nossos descaminhos, Ele ainda nos ama, ainda se importa conosco e espera que nos acheguemos a Ele. O Natal é a festa da reconciliação, a solução definitiva para a teimosia do homem que se desvia. É uma espécie de teimosia divina.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A dimensão plástica da irrelevância


Com um sorriso no rosto, a menina voltava a gozar a liberdade que haviam lhe tomado. 54 dias de privação. Os arautos da liberdade de expressão, os defensores das minorias e de tudo o que é bom, belo e puro sorriram juntos. Carolina Pivetta da Motta, nome de batismo da “pichadora da bienal”, enfim, estava livre para voltar à rotina. Rotina? Infelizmente parece que ela não a tem. Mesmo alçada à condição de símbolo de resistência, personificação de todas as injustiças, acho que menina não terá muito a fazer.

Carol (trato-a com intimidade, já que, agora, ela faz parte de nosso universo) pertence a uma categoria de seres que crêem doentiamente que têm algo a dizer. Ela precisa expressar sua verdade revelada, para o bem daqueles que ainda vivem nas trevas. Sem sua transgressão, sem a interferência de seu grupo no design da cidade, a vida fica muito mais triste. Aliás, a simples idéia de “transgredir”, independentemente de por que e do que se transgride, parece justificar qualquer banalidade, qualquer barulho, qualquer violência. É a linguagem dos libertários, dos descolados.

É uma leviandade dizer que, ao optarem por cobrir as ruas da cidade com seus garranchos, pessoas como Caroline Pivetta desejam apenas sair do anonimato, serem reconhecidas. É muito mais do que isso: querem é despir-se de sua (nossa) bruta irrelevância. E a verdade é que um dos grandes dramas da vida humana é justamente este: somos relevantes apenas para um número muito reduzido de pessoas. Todos nós. E essa falta de importância – que é produto da própria arquitetura do mundo – para alguns é insuportável.

Caroline decerto não se considera uma criminosa; mas aposto que se tem por genial, por única. Quer nos mostrar, por meio de seus 37 rabiscos em diferentes “picos” da cidade, uma verdade que ela crê ter descoberto. E, como eficiente ministra da Ordem Superior, apresenta-nos – mesmo que à força – aquilo que sem ela seríamos incapazes de perceber. Sua brutalidade gráfica é, na verdade, catequizante.

O lamentável é que não damos bola para as “intervenções” de Carolina. Achamos aquilo uma grosseria, uma provocação violenta e tola. Não tenho nenhum interesse em enxergar a verdade sublimada na grafia marginal. E, para esse espírito mimado, nada é mais doloroso do que viver prisioneira da própria irrelevância. Livre. Mas apenas juridicamente. Por mais que lhe digam o contrário, Carol, as cadeias da insignificância ainda nos cercam.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Para além do cronista espirituoso

Leitores desavisados, acostumados com a superficialidade de uma rápida leitura do jornal, talvez ainda não tenham atinado com a perspicácia do cronista da Folha de São Paulo, JP Coutinho. Não se trata de um mero cronista que ora faz gracejos, ora assume posições polêmicas. Para além disso, ele é um estudioso sério, grande professor e dotado daquela capacidade de tratar com leveza e humor assuntos leves e com gravidade assuntos graves. Por que digo isso?
Porque tive oportunidade de conhecer um pouco mais do que o colunista da Folha. Fui aluno seu no curso que ministrou no IICS, em São Paulo. Reproduzo aqui a entrevista dada pelo gajo (como brinca o Martim) e publicada originalmente no site da Revista Dicta&Contradicta. Vale a pena conferir. Por enquanto, as duas primeiras partes.

Parte 1


Parte 2

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Rumo ao nada?

Dois excertos de Viktor E. Frankl

Sigmund Freud afirmou em certa ocasião: "Imaginemos que alguém coloca determinado grupo de pessoas, bastante diversificado, numa mesma e uniforme situação de fome. Com o aumento da necessidade imperativa da fome, todas as diferenças individuais ficarão apagadas, e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme da mesma necessidade não satisfeita."Graças a Deus, Sigmund Freud não precisou conhecer os campos de concentração do lado de dentro. Seus objetos de estudo deitavam sobre divãs de pelúcia desenhados no estilo da cultura vitoriana, e não na imundície de Auschwitz. Lá, as "diferenças individuais" não se "apagaram", mas, ao contrário, as pessoas ficaram mais diferentes; os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos como os santos.

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A vida no campo de concentração ensejava sem dúvida o rompimento de um abismo nas profundezas extremas do ser humano. Não deveria surpreender-nos o fato de que essas profundezas punham a descoberto simplesmente a natureza humana, o ser humano como ele é — uma liga do bem e do mal! A ruptura que perpassa toda a existência humana e distingue bem e mal alcança mesmo as mais extremas profundezas e se revela até no fundo desse abismo aberto pelo campo de concentração. Ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.