sexta-feira, 6 de março de 2009

Uma saída para a religião

A refrega entre ciência e religião voltou à tona com força máxima em 2009. Culpa de Darwin, que faz aniversário neste ano. 200 anos de vida, 150 desde a publicação de “A Origem das Espécies”. Numa tentativa de discutir a relação, muitos se aventuram a propor uma reaproximação entre as duas, talvez como uma forma de reviver os áureos tempos em que a Igreja patrocinava as “heresias” científicas de seus fiéis. Cupidos destrambelhados, a conciliação parece longe de um final feliz. Mesmo assim, não faltam figuras benevolentes, tolerantes como os Santos, a propor uma solução para a peleja. Um exemplo é o físico Marcelo Gleiser, em texto para o Caderno Mais!, da Folha de São Paulo (A Ciência e as Religiões, FSP 22/02/2009). Gleiser, na melhor das boas intenções, apresenta aquilo que seria uma saída para a controvérsia.

Para ele, o problema principal está na relação dos religiosos com os textos sagrados. Escreve: “(...) Em vez do radicalismo imposto por uma interpretação liberal (certamente um erro tipográfico, mas que pode complicar a compreensão de leitores incautos) da Bíblia, as correntes mais liberais tendem a ver o texto bíblico de forma simbólica, como uma representação metafórica de acontecimentos e fatos passados com o intuito – dentre outros – de fornecer uma orientação moral para a população.” O crente ideal seria, então, aqueles que reconhecem “(...) que é absurdo insistir que a Terra tenha menos de 10 mil anos ou que Adão e Eva surgiram da terra. Para um número cada vez maior de congregações, é fútil fechar os olhos para os avanços da ciência”. Para esses “(...) a preservação dos valores religiosos, da coesão de suas congregações depende de uma modernização de suas posições de modo que possam refletir o mundo em que vivemos hoje e não aquele em que pessoas viviam há dois mil anos”. Afinal, “(...) o mundo mudou, a sociedade mudou, a religião também deve mudar”.

A boa intenção, como sabemos, é característica comum no inferno (no metafórico, claro). A argumentação de Gleiser pode ser resumida da seguinte forma: religião e ciência podem conviver em harmonia, desde que a religião deixe de ser... religião. Abandonar qualquer ambição de ser “a” verdade, abrir mão de seus dogmas, relativizar a fé (Adão e Eva? Nem pensar!), em suma, adaptar-se ao “mundo moderno”: eis a saída, segundo o físico – que, entendo, fala em nome da ciência.

Mas há na lógica racional de Gleiser uma lacuna que compromete toda sua argumentação: ora, a religião só é religião enquanto cultiva sua pretensão de verdade, quando mantém seus dogmas, quando toma a fé como a lente para a compreensão do mundo. Goste-se ou não, religião é isso. Caso contrário, qual seria a diferença entre “crer” nas lições morais das fábulas de La Fontaine e devotar-se à moral Cristã? Neste caso, não importaria se o deus é real ou metafórico. Bastaria absorver os ensinamentos que ainda se encaixam na modernidade – ou fazer as devidas adaptações –, desprezando as superstições desacreditadas pela ciência. Mas como se temporalizar aquilo que se declara o Eterno?

Percebam que nesta leitura a ciência toma para si a prerrogativa de verdade que é negada à religião. O Divino e seus fiéis ficariam submetidos à agenda científica, sempre à espera da próxima descoberta. O que hoje é praticável, amanhã pode se tornar antiquado; o que agora é tolerável tornar-se-ia anacrônico. Trata-se da morte de Deus. Não na forma descrita por Nietzsche, mas defunto por sua incapacidade de ter vida própria, autônoma. Logo Ele?!

Involuntariamente, Marcelo Gleiser manifesta a mais nefasta intolerância: aquela que se apresenta de forma condescendente, cheia de amor para dar. Em nome da harmonia, para preservar a paz, em defesa do amor mútuo, a religião faria todas as concessões, negaria a si própria e levaria sua cruz. Crucificada, morreria em favor de seu próprio algoz. Metáfora? Realidade? Não faz diferença.

Quero crer que Gleiser é um agnóstico ingênuo. Ou um ateu que ignora os fundamentos da religião. Caso contrário, eu desaconselharia qualquer médico a insinuar, perto dele, uma reza antes de realizar uma cirurgia. A tolerância de Gleiser segue a lei newtoniana segundo a qual dois corpos não podem ocupar um só lugar ao mesmo tempo.

Um comentário:

Filipe de Santa Maria disse...

Olá Elton. Não acredito que a religião precise deixar de ser religião para conviver com a ciência.
Isto que Gleiser propõe não é nenhum absurdo, e ele ainda comete o erro de não dizer que muitos católicos acham o mesmo desde os escolásticos.
Se Deus dotou o Universo de uma ordem fixa, poderíamos investigar o Universo e entender como tudo funciona. Foi o catolicismo e os escolásticos que deram a base teológica para oq vinha a ser a investigação científica.
A teoria do Big Bang foi desenvolvida por Lamaitre, um padre católico. Um dos maiores critico da teoria do Design Inteligente é o evolucionista e católico Kenneth Miller.
O dogma católico diz que Deus criou o mundo do Nada. Não fala que devemos crer na criação como está literalmente na Biblia.
Orígenes de Alexandria, um dos principais eruditos da Igreja antiga, já dizia que, embora sempre verdadeira, era preciso separar a leitura da Bíblia em literal, moral e espiritual.
Sugiro a leitura do blogue de Marcio Campos, um jornalista, estudioso da Igreja, e católico tradicionalista (http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/blog/tubodeensaio/). Ele defende que não há contradição nenhuma entre religião e ciência. Também acredito nisso. Eu, particulamente, gosto muito do assunto.
Mas me estendi demais.
Um Abraço.