Desde que ingressei na carreira de revisor de textos, fiz
alguns cursos, li diversos livros cujo assunto era o mercado editorial e acumulei alguma experiência. Ainda assim, só muito recentemente
encontrei um livro que abordava um
assunto esquecido, quase antiquado. Valery Larbaud, em seu Sob a Invocação de São Jerônimo,[1]
fala a respeito das virtudes do tradutor (muitas das quais se aplicam
igualmente a preparadores e revisores de textos). Para que fique claro a que me
refiro quando falo de virtude, cito o filósofo Mortimer Adler, numa passagem em
que ele expõe a noção aristotélica de virtude:
Segundo Aristóteles, a virtude moral é o hábito de fazer as escolhas certas. Fazer uma ou duas escolhas certas dentre muitas escolhas erradas não basta. Se as escolhas erradas são em número muito maior do que as escolhas certas, você persistirá na direção errada – irá para longe da felicidade, não para perto dela. É por isso que Aristóteles enfatiza a ideia de hábito.Você sabe como os hábitos se criam. Para criar o hábito de ser pontual nos seus compromissos, você tem de tentar ser pontual repetidas vezes. Gradualmente se cria o hábito da pontualidade. Uma vez criado, você tem uma disposição firme e forte de ser pontual ao chegar onde prometeu chegar. Quanto mais forte o hábito, mais fácil agir daquele jeito, e mais difícil perdê-lo ou agir de maneira oposta.Quando você cria um hábito e ele está bem desenvolvido, sente prazer em fazer aquilo que tem o hábito de fazer porque o faz com facilidade – quase sem esforço. Você sente que é doloroso agir de modo contrário aos seus hábitos.Aquilo que acabo de dizer vale para os bons e para os maus hábitos. Se você criou o hábito de dormir demais, é fácil e agradável desligar o despertador e continuar dormindo. É difícil e doloroso acordar na hora. Por isso, se você criou o hábito de se permitir entregar-se a certos prazeres ou de evitar certas dores, é difícil abandoná-lo.[2]
Julgo necessário evocar essa ideia de virtude porque ela, pelo que me consta, está praticamente ausente do imaginário dos aspirantes ao trabalho com textos –
tradutores, preparadores, revisores... Tem-se em mente que é necessário estudar
língua, dominar certos recursos de informática, organizar-se como categoria
profissional, etc. No entanto, para além de tudo isso, há uma espécie de
predisposição ao ofício que antecede a toda essa formação, digamos, técnica do profissional. O conjunto de
virtudes que listarei adiante é o que, parece-me, constitui essa predisposição.
Parto de minha experiência pessoal e das leituras que fiz e estou bem ciente de que há uma boa dose de subjetivismo
e generalização. Seja como for, se o que tenho a dizer suscitar alguma
autocrítica em profissionais experientes ou contribuir para a formação de aspirantes
e iniciantes, já me darei por satisfeito.
Para o propósito que tenho em mente, não é necessário distinguir
com precisão as atribuições de um preparador e de um revisor de textos. Mantenho o
termo revisor simplesmente porque estas considerações foram suscitadas pela
avaliação do trabalho de um revisor. O que vem a seguir, no entanto, se dirige
igualmente a preparadores e revisores.
1. O revisor humilde (humildade x orgulho)
Já vi o revisor ser comparado a um goleiro
– execrado quando falha, esquecido quando brilha. Não
considero a metáfora válida. Para mim, o revisor de textos se aproxima mais da
figura de um contrarregra – alguém cujo trabalho é garantir, com a máxima
discrição possível, sem fazer-se notar, que tudo funcionará bem para que o
outro brilhe.
Aliás, um contrarregra que, por alguma razão, se julgue
digno dos holofotes está fugindo à sua função. Pode até ser que tenha seu
talento e o exiba noutras oportunidades; mas, enquanto estiver como
contrarregra, ele é contrarregra. O mesmo vale para o revisor. O pressuposto básico,
fundamental, da atividade de revisão é que se revisam textos alheios. Isso
implica que o revisor:
- Renuncia seu próprio estilo, suas preferências, seu gosto pessoal. Se as escolhas do autor/tradutor estão corretas, coerentes, aplicadas sistematicamente, adequadas ao tom do texto, não cabe ao preparador/revisor modificá-las. Neste quesito se encontram boa parte das substituições de seis por meia dúzia que tanto incomodam tradutores e editores.
- Presume que o tradutor é alguém suficientemente qualificado para fazer o serviço de tradução. Se esta presunção vai se sustentar ao longo do trabalho é outra história. Em geral, é aconselhável que o profissional parta desta presunção e procure imaginar por que o tradutor fez determinadas escolhas. O revisor é um humilde zelador do texto alheio e só deve interferir quando for capaz de justificar, de modo plausível, cada uma de suas intervenções.
- Intervém no texto criteriosamente. Na minha segunda semana de trabalho como revisor, fiz alterações no texto de um dos diretores de uma grande empresa. Este deu um chilique, perguntando quem tinha mexido no texto dele. Muito cautelosamente, mas com firmeza, tive de explicar a razão de cada uma das intervenções que fiz. Certamente, quem mais saiu ganhando dessa experiência fui eu. Daí saí com o preceito: Não intervir arbitrariamente, mas criteriosamente.
A humildade faz o revisor/preparador reconhecer que o texto não é seu.
2. O revisor diligente (diligência x negligência)
Se há um vício mortal ao revisor de textos, este é a
negligência, a displicência, a suposição de que ninguém vai conferir a
qualidade do trabalho. Ainda que demore, em algum momento os problemas virão à
tona, e o profissional ficará marcado. Por exemplo: todos os profissionais que
trabalham para editoras recebem um manual de padronização e estilo. O manual
não pretende ser exaustivo nem uma camisa de força; mas contém critérios convencionais
que DEVEM ser aplicados. Se o manual diz que o número da remissão à nota de
rodapé deve ficar depois do sinal de pontuação, não há nada que justifique que
este apareça antes! Se o manual prescreve que depois do título de um livro
citado em referência vem ponto final, não há razão para que conste vírgula. E
assim por diante. Muito curiosamente, a revisão de prova acaba tendo de
corrigir problemas de padronização porque o preparador deixou a desejar! Isso
tem nome: negligência! São exemplos de negligência também erros de ortografia
gritantes (que até o revisor do Word pode pegar), dúvidas que podem ser
resolvidas com uma simples consulta ao Google, etc.
O revisor diligente confere tudo, consulta tudo, tira dúvidas, relê...
A diligência faz o revisor/preparador seguir com atenção as instruções recebidas e não se furtar à pesquisa para esclarecer suas dúvidas.
3. O revisor prudente (prudência x temeridade)
A partir daqui, as virtudes passam a aproximar-se umas das
outras. Já dissemos que o revisor humilde tenta inferir os critérios do
autor/tradutor e que o revisor diligente
pesquisa, consulta, tira dúvidas. Pois bem, diremos agora que o revisor prudente não intervém quando têm
dúvida, não repadroniza injustificadamente, não mexe no texto à revelia daquele
que assina o texto ou de seu editor. Se, num romance, o tradutor optou por manter as marcações
de diálogo com aspas, mantenham-se; se optou por usar travessões,
conservem-se (salvo, claro, orientação contrária). Se, num texto ensaístico, o
tradutor optou por usar as segundas pessoas, que assim seja; se ocorrem termos
pouco usuais, um vocabulário rebuscado, por que vulgarizá-los? Vejam: escolher um vocabulário rebuscado ou simplório envolve uma decisão editorial que foge ao escopo do preparador/revisor.
A prudência faz o preparador/revisor pesquisar, perguntar, esclarecer e somente então interferir.
4. O revisor seguro (segurança x insegurança)
Nada do que foi dito até aqui tem como objetivo tolher a
liberdade do preparador/revisor. O que se espera é que os profissionais sejam seguros
do que fazem. Repetidas vezes, preparadores deixam comentários e revisores de
prova fazem marcações a lápis com perguntas que poderiam facilmente ser
resolvidas (com um pouquinho mais de diligência). Estar seguro de si e de seu
trabalho significa apenas que se fez o trabalho com diligência e que se é capaz
de justificar as decisões tomadas.
A segurança faz o preparador/revisor julgar criticamente suas justificativas e apresentá-las de modo plausível, caso lhe sejam exigidas.
5. O revisor responsável (responsabilidade x irresponsabilidade)
Espera-se que profissionais responsáveis assumam as
consequências de seus atos, para o bem e para o mal. Caso algum padrão não
tenha sido aplicado, o colaborador deve estar disposto a refazer imediatamente
o que fez de modo incompleto ou equivocado; caso se comprometa a entregar o
trabalho em determinado prazo, espera-se que o cumpra ou, ao menos, avise à
editora com alguma antecedência que não conseguirá cumpri-lo. Sumir é atitude
irresponsável. Não responder e-mails é atitude irresponsável. Não atender o
telefone é atitude irresponsável.
Não cabe aqui tratar deste assunto, mas abordo-o apenas de
passagem: em geral, o profissional já sabe quanto vai receber por determinado
trabalho no momento em que o aceita. Alegar que fez o trabalho
proporcionalmente ao valor recebido não é apenas irresponsabilidade: é ser
desonesto! Se aceitou fazer o trabalho, que o faça com profissionalismo e
responsabilidade!
A responsabilidade faz o preparador/revisor cumprir os prazos e as exigências daquele que contratou os seus serviços.
6. O revisor solícito (solicitude x hostilidade)
É imprescindível que um freelancer
saiba que é um prestador de serviços, e a editora é um CLIENTE! E, como cliente, tem o direito de exigir que o trabalho
seja feito de acordo com o que foi combinado e, caso seja necessário um
retrabalho, o profissional, se é profissional de fato, há de fazê-lo de bom
grado, visando a satisfazer seu cliente e a garantir que este continue a contar
com seus trabalhos.
A solicitude faz o preparador/revisor receber de bom grado um feedback relativo ao seu trabalho mesmo quando este é negativo.
***
Perceberam como nada do que foi mencionado aqui diz respeito
à competência técnica do profissional? Concordam que as características
mencionadas aqui independem de sua formação acadêmica? Ficou claro que há uma
espécie de atitude de espírito a ser adquirida perante o trabalho com textos?
Espero que sim. Espero também que humildade, diligência, prudência, segurança, responsabilidade
e solicitude façam de nós profissionais melhores. A começar em mim.
[1]
Valery Larbaud, Sob a Invocação de São
Jerônimo: Ensaios sobre a Arte e Técnicas de Tradução. Trad. Joana Angélica
d’Avila Melo. São Paulo, Editora Mandarim, 2001.
[2]
Mortimer J. Adler, Aristóteles para Todos.
Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo, Editora É, 2010, p. 108-09. (Coleção Educação
Clássica)
8 comentários:
brilhante texto, William! Compartilhe! Compartilharei tb!
Fantástico, William! Todos nós deveríamos recortar as frases em itálico e andar com elas dentro da carteira para reler de tempos em tempos e lembrar qual é o nosso verdadeiro papel.
Muito obrigados pelo curso intensivo de revisão.
Abraço grande,
Pablo
Cadê o Revisor?
Muito bom. Com pequenos ajustes, aplica-se perfeitamente a tradutores também.
Ótimo texto!
Todos esse hábitos são às vezes tão duros de serem cultivados por revisores em início de carreira. É tão pesado ter que refazer o trabalho ou perceber que deixou de corrigir algo tão bobo, por pura falta de atenção ou por preguiça...
É preciso ter claro sempre que a boa revisão só trará benefícios ao profissional e ao cliente. É necessário, também, perder o medo de assumir TODAS as responsabilidades profissionais.
Havia tempo eu procurava uma boa definição para o papel do revisor... "Contrarregra" é excelente!
Também gostei muito do texto, William!
Como já estive/estou do outro lado também, posso dizer que os free-lancers que não cumprem várias dessas questões que você colocou ficam "queimados" nas editoras - ou seja, dificilmente serão chamados para fazer outros trabalhos. Além disso, como é comum funcionários do departamento editorial migrarem para outras editoras, às vezes, se essas pessoas pessoas tiveram uma/várias experiência(s) negativas com um determinado prestador em uma editora, provavelmente não se arriscarão a contratar o trabalho de um determinado free-lancer novamente ao receber o currículo dele nessa outra editora.
Eu concordo totalmente que ter conhecimentos técnicos é importante, mas ter uma postura profissional é essencial para a profissão.
Abraços.
Excelente texto, parabéns pela explanação e obrigada pela contribuição!
sensacional! que bom saber que existe gente como você, que fala em valores tão esquecidos.
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