terça-feira, 7 de maio de 2013

Antes de meter o bedelho (e uma ajuda inesperada)



Dada a repercussão dos dois últimos posts (aqui e aqui), nos quais abordo o cuidado com o texto alheio, julguei que valeria a pena dar continuidade a esta série, a fim de apresentar ferramentas úteis tanto a iniciantes quanto a iniciados na lide do processo editorial. Desejo, sinceramente, que (1) iniciantes encontrem aqui de maneira mais ou menos organizada informações que tive muito trabalho para reunir e sistematizar quando em início de carreira; e (2) que iniciados encontrem dados que, de alguma maneira, aperfeiçoem seu trabalho. Como tenho bem poucos amigos preparadores e revisores de texto, muito do que se verá nesta série é de fato idiossincrático, pautado apenas pela minha experiência pessoal. 

E, já que estou falando de minha experiência pessoal, menciono aqui uma obra cuja leitura foi decisiva não apenas para a formação da minha visão de mundo, mas, e surpreendentemente, para minha formação profissional. Refiro-me ao clássico Como Ler Livrosde Mortimer J. Adler. Para falar a verdade, li-o pela primeira vez na edição anterior, ainda sob o título A Arte de Ler. Certamente, este livro é muito mais do que um manual de técnicas de leitura – há toda uma concepção de educação subjacente a ele. Mas, como o meu assunto aqui é a utilidade do livro para o trabalho dos preparadores e revisores de texto, limito-me a mencionar os aspectos mais decisivos.

Adler fala de quatro diferentes níveis de leitura – leitura elementar, leitura inspecional, leitura analítica e, por fim, leitura sintópica. A leitura elementar, de maneira bem grosseira, é aquele nível de leitura suficiente para que se considere uma pessoa alfabetizada. É elementar porque ainda restrita à mera decodificação de sinais gráficos, seguido de sua respectiva conversão em sons, sem que necessariamente se chegue às ideias propriamente ditas. O segundo e o terceiro níveis de leitura são os mais decisivos para o trabalho do revisor, e vou tratar de pontos específicos adiante. A leitura sintópica é aquele tipo de leitura em que nos esforçamos sobretudo para relacionar ideias afins de livros ou autores diferentes. 

Ainda que as sugestões apresentadas na seção dedicada à leitura analítica sejam preciosas, para o trabalho do revisor a parte mais decisiva, segundo penso, é a dedicada à leitura inspecional. Explico: uma vez que o preparador/revisor tende a ler obras pelas quais pouco se interessa; uma vez que tem de ler obras por dever de ofício; uma vez que o poder de seleção das obras a serem lidas é bastante limitado, é absolutamente imprescindível que o revisor seja um hábil leitor inspecional. Entre os preceitos apresentados por Adler, encontram-se: 
1. Examine a folha de rosto e o prefácio;

2. Examine o sumário;

3. Consulte o índice remissivo;

4. Leia a contracapa e a sobrecapa;

5. Examine os capítulos que lhe pareçam centrais ao argumento do autor;

6. Folheie o livro, detendo-se pontualmente em alguns parágrafos ou lendo algumas páginas em sequência.
Adler desenvolve cada uma destes pontos no livro, mas o importante é tomar ciência de que, para ele, essa etapa que antecede a leitura propriamente dita ajuda a colocar a mente na disposição correta. Diz ele que, quando “acaba de folhear o livro sistematicamente (...), você já sabe um bocado a respeito do livro, sem ter gasto com ele mais do que uns minutos, no máximo uma hora”. Ditos dessa forma, os conselhos parecem uma grande obviedade. Todavia, a minha experiência tem evidenciado que muitos revisores de texto simplesmente sentam-se para revisar um livro e seguem num fluxo contínuo e ininterrupto sem parar sequer para familiarizar-se com o universo referencial do autor. 

Vamos para a aplicação. Dada a diversidade de gêneros textuais, de escolas de pensamento, de peculiaridades de época, de autor, de tradutor, etc., etc., etc., é absolutamente impossível que o revisor já domine de antemão todas as convenções do gênero, todo o vocabulário específico de certo autor, etc. Portanto, a melhor maneira de avaliar quanto trabalho aquela revisão lhe custará é, justamente, fazer esta leitura inspecional. 

Evidentemente, não basta folhear o livro. É igualmente importante fazer as perguntas certas, que ajudarão a fazer o levantamento não só dos recursos necessários para determinado trabalho (obras de referência, por exemplo), mas também do tipo de intervenção que o texto requer. É tão comum editores de autoajuda queixarem-se de vocabulário demasiado erudito quanto editores de filosofia queixarem-se da vulgarização sistemática (lexical ou sintática) feita por revisores. 

Partindo dessa proposta de Adler, elenco a seguir uma série de perguntas importantes que devem ser respondidas antes de começar o trabalho de intervenção no texto:

  • Gênero textual: 
    • A que gênero pertence este texto? Conheço as convenções do gênero? (Teatro: nomes das personagens, distinção entre rubrica e texto; Romance: formas de marcação de diálogo, noções de discurso direto, discurso indireto, indireto livre; Ensaios, diálogos filosóficos, biografia, história?) 
  • Campo do saber 
    • Tenho alguma familiaridade com este campo do saber? Trata-se de registro baixo ou elevado? 
  • Importância do autor 
    • Quem é este autor? Há outras obras dele já publicadas em português? Qual é a especialidade dele? Domino suficientemente seu quadro de referências? Em que período a obra foi escrita? 
  • Vocabulário 
    • Há termos técnicos específicos cunhados pelo autor? Há um vocabulário já estabelecido em língua portuguesa? 
  • Relações do autor 
    • Com quem este autor dialoga? Quais são os autores mais conhecidos que pertencem a seu quadro de referências? A que escola (literária, filosófica) este autor pertence?
  • História da língua 
    • Em que período a obra foi escrita? Quais são os autores brasileiros da mesma época? O tradutor teve a preocupação de mimetizar o estilo do original? Há expressões que parecem datadas, mas que conferem o sabor de época ao texto? 
  • Tradutor 
    • Quem é este tradutor? Ele já tem outras traduções publicadas? É experiente ou é iniciante? É rigoroso? Já tem credibilidade pública ou na editora? É acessível para esclarecer dúvidas?
Não, fazer essas perguntas todas não é excessivo de maneira alguma. Se pensarmos bem, já fazemos algumas delas de maneira mais ou menos intuitiva. Como disse no início, o objetivo é sistematizar um conhecimento mais ou menos esparso. Garanto para vocês, a maior parte dessas perguntas pode ser respondida, justamente, com a leitura inspecional proposta por Adler. As que não puderem ser respondidas assim serão facilmente respondidas com uma ou duas “googladas” (nesta série, ainda pretendo falar de alguns recursos ótimos da internet).
Suponha que você tem de revisar a tradução de um romance escrito no século XVIII; suponha também que o tradutor tenha sido cuidadoso o bastante para pesquisar as formas de tratamento vigentes na época e que tenha tentado reproduzir estes usos em sua tradução; suponha ainda que o tradutor mimetiza as construções sintáticas comuns nos textos brasileiros do mesmo período. Muito bem, o que você terá de fazer? Em primeiro lugar, fazer um levantamento bibliográfico de apoio. Mais uma vez, isso é relativamente simples. Um tratado de história da literatura, por exemplo, será de grande valia. Penso, por exemplo, na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, ou em A Literatura Brasileira Através dos Textos, de Massaud Moisés. Você não precisa saber tudo; basta saber procurar. Depois de saber certas características da língua da época, convém, também, conhecer alguns dicionários que registrem acepções perdidas de certos termos. Eu, por exemplo, vez por outra me pego consultando o dicionário de Raphael Bluteau, para certificar-me de que determinado termo não está tão equivocado quanto minha cabeça contemporânea me fez pensar, mas, ao contrário, tem lastro na língua portuguesa. Se tiver à mão outros livros do mesmo autor ou de algum contemporâneo, isso já pode ser de alguma valia também.
E se o texto a ser revisado for um tratado geral de marketing? Bem, neste caso, acho que o Bosi não vai ajudar muito. Quem poderá ajudar, então? Cabe a você descobrir as principais obras de referência daquela área.
Você está sugerindo que eu compre um monte de livros, só para trabalhar? Sim e não. De fato, acho mesmo que um profissional do texto precisa ter uma biblioteca pessoal diversificada e com boas obras de referência. Mas há muitos recursos disponíveis na internet – o Google Books e o preview da Amazon são ferramentas a que recorro inúmeras vezes, todos os dias. Há muita coisa disponível também no Scribd.

***

Para encerrar, porque já me alonguei demais:
O mais importante, ao fazer essa leitura inspecional, ao procurar responder a essas perguntas, ao fazer o levantamento dos recursos auxiliares, é você saber que a qualidade do seu trabalho será muito melhor do que se fizesse as coisas aleatoriamente contando apenas com a própria intuição. Se o resultado de seu trabalho for melhor, as editoras para as quais você presta serviço ficarão felizes e continuarão a enviar trabalho. O editor, por sua vez, ficará feliz, por não ter de perder um tempo precioso desfazendo marcações indevidas feitas por revisores e preparadores (e, sim, eles fazem isso!). O editor não perde tempo e não corre o risco de, por cansaço, pressão ou qualquer outro motivo, deixar que o texto seja corrompido porque o revisor foi leviano e ele, desatento. Por fim, o leitor ficará feliz, por não ter de interromper a leitura a cada página por causa de erros e incoerências de critério. O preparador/revisor ficará feliz, o editor ficará feliz e o leitor ficará feliz.
Sendo esta a perspectiva, vale ou não a pena tentar?