sexta-feira, 25 de abril de 2014

Da importância do outro


Trecho de entrevista concedida pelo professor Mendo Castro Henriques* a Carolina Matos e publicada pelo Portuguese American Journal. A tradução é minha. (Publicada com autorização) 


ENTREVISTADOR: Ao longo de toda a sua carreira, o senhor tem explorado e escrito sobre uma ampla gama de assuntos, de filosofia política e ética a história e religião. Recentemente o senhor e Nazaré Barros escreveram juntos Olá, Consciência!, um livro dedicado à filosofia da consciência como um valor individual e social. Por que escrever este livro agora?


MENDO: O livro surgiu como um alerta à necessidade de uma mudança de paradigma – de uma sociedade centrada no “eu” para uma sociedade cujo foco está no “nós”. A mudança começa com a percepção de que a “consciência” não deve ser compreendida como o “eu” da psicologia ou como um epifenômeno resultante de processos neurológicos, mas, antes, como um a relação entre o “eu” e o “outro”. Como disse certa vez Viktor Frankl, “em última instância, o homem não deve perguntar qual é o sentido de sua vida; deve reconhecer que é a vida mesma que lhe está perguntando”, uma fórmula que ecoa a fala do Presidente Kennedy. Temos de começar não por ouvir nossos projetos, mas pelos planos que a vida tem para nós por meio do encontro com o outro. Esse choque de paradigmas pode ser desconcertante. Creio que o livro, num primeiro momento, causa algum desconforto ao leitor, ao menos para aqueles que estão acostumados a aceitar opiniões e estilos de vida sem “consciência” do que estão fazendo ou pensando. Devo dizer que “Olá, Consciência!”, assim como Sócrates e as moscas que perturbam o sono de todos, pretende por em xeque muitos clichês e mitos urbanos, forçando o leitor a deixar a zona de conforto, na qual com muita frequência são os preconceitos que definem tudo.



ENTREVISTADOR: A filosofia tem a fama de ser especialmente hostil às mulheres. O senhor acaba de ser coautor com uma filósofa. Pode comentar essa experiência?



MENDO: A filosofia nasceu como uma forma de diálogo – das perguntas que fazemos e das respostas que conseguimos. Podemos dialogar conosco mesmos ou com o outro. Neste caso, o diálogo foi entre duas pessoas. Para ser mais preciso, a ideia original do livro só se desenvolveu quando Nazaré começou a dialogar comigo. Foi assim que o processo começou e é assim que “Olá, Consciência!” justifica seu título – que é, obviamente, uma saudação que simboliza este encontro. Os 10 primeiros capítulos tratam da descoberta das ferramentas intelectuais e emocionais que constituem a base de nossos modelos de pensamento e de busca da “verdade”. Os capítulos 11 a 21 expandem o debate para a ação humana na história, a política, a religião, a economia e a arte, procurando refletir sobre o que é valioso e “bom”. Escrevê-lo foi ainda mais prazeroso porque Nazaré e eu, como muitos leitores apontaram, conseguimos alcançar uma síntese perfeita – como tocar piano a quatro mãos.



ENTREVISTADOR: Qual o papel do filósofo e da filosofia no mundo atual?


MENDO: A filosofia sempre tentou ser a síntese de ideias que sustentam o que fazemos e o que pensamos. Essas ideias estão nas obras de arte, na ciência, no direito, na política, na ética e em tudo o mais que vive. No passado, os filósofos apresentavam esta síntese como um todo a ser aceito ou rejeitado. O conceito mudou desde então. De uma perspectiva mais conservadora, estamos vivendo naquilo que sobrou de nossas tradições, as quais, conforme escreveu Alasdair McIntyre, se tornaram a “terra desolada” que T. S. Eliot descreveu. Aqui, Platão e Aristóteles, e mesmo Descartes ou Hegel, são vistos como referências exóticas para a cultura de massa. Esse afastamento de nossas raízes intelectuais tem sido culpado pela chamada “crise de valores”. Todavia, sem esta “travessia do deserto”, nossas ideias não teriam alcançado autenticidade. Portanto, não creio que estamos enfrentando uma “falta de valores”, mas uma abundância de valores na ausência da ética. A ética tradicional já não é suficiente para enfrentar o futuro incerto que, como nos advertiu Hans Jonas, está cheio de riscos. O papel da filosofia hoje é reconstruir a ponte com as nossas raízes intelectuais, o que só pode ser conseguido por meio do reconhecimento do outro.



ENTREVISTADOR: Em sua opinião, quais são os maiores problemas filosóficos de nosso tempo?


MENDO: No século XX, a filosofia – e em particular o conhecimento do “eu” – deixou de ser uma preocupação de poucos estudiosos e, como observou Bernard Lonergan, passou a ser uma questão social. Portanto, devemos começar por dizer “não” ao pensamento centrado no “eu”. A questão é: como podemos, de fato, conectar-nos ao outro? Filósofos como Martin Buber, Franz Rosenzweig, Viktor Frankl, Emmanuel Levinas, Hans Jonas, Giusepe Zanghi, Charles Taylor e Gabriel Marcel demonstraram que o diálogo é de suma importância para a existência humana. Creio que, enfim, nossas preocupações podem resumir-se numa única sentença: “Queremos ser ouvidos”. O mundo não quer mais ser explicado – quer ser ouvido. O povo não quer mais ser tão somente representado – quer compartilhar. No núcleo da realidade, há uma voz que clama: “Queremos ser reconhecidos”.



ENTREVISTADOR: Se o senhor pudesse escolher uma única coisa para mudar no mundo, o que seria?

MENDO: Em vários sentidos, o século XX foi o século do “eu” que gerou o ego de grandes ditadores, como Hitler, Stálin e Mao Zedong, que impuseram sua vontade sobre os outros por meios bárbaros e violentos. Ele também gerou o egoísmo individual comum a produtores e consumidores. Creio que o século XXI será o século do “nós”, no qual nenhum ato coletivo substituirá jamais o ato singular de encontrar o “outro” e no qual reconheceremos o sentido que resulta de nosso encontro com a singularidade do outro. Ao ignorar o outro, abriremos passagem para atos de corrupção e violência e para a imoralidade pessoal e social. Pensadores dialógicos agora respondem ao barbarismo do século XX demonstrando de que maneira a razão egoísta nos levou ao malogro. Precisaremos aprender que ser ético é ser capaz de enfrentar não apenas os fatos históricos e sociais mais importantes, mas também os acontecimentos mais corriqueiros que podem incorporar atos violentos e desumanos contra o outro, e que, porque estão situados em arcabouços históricos e sociais, podem ser considerados “normais”. Ser violento é negligenciar o outro, e a filosofia deve evitar isso.


* Mendo Henriques - Nasceu em Lisboa (1953) tem quatro filhos e vive em Lisboa, onde é professor. É licenciado e mestre em Filosofia pela Universidade de Lisboa e doutorado em Filosofia Política pela UCP (1992). Tem 12 títulos publicados em Portugal, Brasil e França sobre Fernando Pessoa, Eric Voegelin, Bernard Lonergan, e temas de filosofia da consciência e obras em conjunto sobre temas de cidadania e história. Ocupou cargos de assessor e dirigente entre 1994 e 2007 no Ministério da Defesa Nacional. Tem proferido numerosas conferências no país e no estrangeiro sobre temas da especialidade.

 

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