terça-feira, 19 de agosto de 2014

Técnica, inspiração e arte


Toda arte dispõe de um conjunto de regras, de processos que auxiliam a execução dos atos. Neste ponto, a arte literária não difere das outras, nem mesmo dos simples misteres profissionais. Se cair alguém numa piscina e começar a mover os braços e pernas, poderá nadar. Mas se tomar um técnico, se seguir as regras dos movimentos, combinando-os com os da respiração, nadará mais perfeita e facilmente. A representação no teatro, o canto, a música ficarão realmente artísticos se os dons naturais do indivíduo forem desenvolvidos, aperfeiçoados pela técnica dos conservatórios. Da mesma forma, o falar, o expressar-se cotidiano se aperfeiçoa e encontra novos recursos de força expressiva após os exercícios técnicos da gramática, da oratória. A arte literária – a prosa menos, mais a poesia – não se circunscreve unicamente à inspiração, que é a essência; nem ao gosto, que é princípio dirigente. Catulo da Paixão Cearense, verdadeiramente inspirado, seria muito maior poeta se tivesse o auxílio da técnica que lhe faltou. Claro está que só a técnica nada consegue: de que adiantará ao cantor o conservatório se lhe faltar a voz? Que benefício trará a técnica ao poeta sem inspiração? Ferreira, Filinto Elyseo, Emílio de Meneses, Félix Pacheco foram produtos da técnica. Quem os lê? A técnica é o elemento auxiliar, ao passo que a essência é a inspiração acompanhada pelo gosto estético. Querer inverter estes dados, passando a técnica a essencial, todo o trabalho artístico estará morto. Quanto menor for a inspiração, quanto menos apurado for o gosto, tanto maior será a ajuda da técnica. Amadeu Amaral é um exemplo comprovante; Catulo da Paixão Cearense, outro. A este pouco auxiliou a técnica e foi grande poeta porque era veemente a sua inspiração. Àquele, os recursos da arte aumentaram e puseram em evidência a pequena centelha interior.

Silveira Bueno, Estilística Brasileira. São Paulo, Saraiva, 1964, p. 12.

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