segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Senso do mistério e senso da realidade




O tipo de mente capaz de compreender a boa ficção não é necessariamente a mente educada, mas é sempre a mente disposta a ter seu senso de mistério aprofundado pelo contato com a realidade, e seu senso de realidade aprofundado pelo contato com o mistério. A ficção pode ser sóbria e misteriosa ao mesmo tempo. Em boa parte da crítica popular, vigora a ideia de que toda ficção deve ser a respeito do Homem Médio e tem de retratar a vida cotidiana ordinária, que todo escritor de ficção deve produzir o que se costuma chamar “uma parcela da vida”. Mas se a vida, neste sentido, nos satisfizesse, não haveria sentido em produzir literatura nenhuma.


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Não sei o que é pior: ter tido um professor ruim ou não ter tido professor nenhum. Em todo caso, acredito que o trabalho do professor deve ser em larga medida negativo. Ele não pode conferir-lhe o dom, mas, se o encontra, pode tentar guardá-lo de seguir numa direção flagrantemente equivocada. Podemos aprender como não escrever, mas esta é uma disciplina que não diz respeito apenas à escrita propriamente dita, mas a toda a vida intelectual. Uma mente livre de emoções falsas, de sentimentos falsos e de egocentrismo terá ao menos esses obstáculos removidos de seu caminho. Se o pensamento não é vulgar, ao menos não haverá vulgaridade em sua escrita, ainda que você não seja capaz de escrever bem. O professor pode tentar eliminar o que é positivamente ruim, e este deve ser o propósito de toda instituição de ensino. Todas as disciplinas podem ajudá-lo a escrever: lógica, matemática, teologia e, claro, desenho. Qualquer coisa que o ajude a ver, qualquer coisa que o faça olhar com atenção. O escritor jamais deve se envergonhar de ser um observador. Não há nada que não exija sua atenção. 

Flannery O’Connor, "The Nature and Aim of Fiction". In: Mystery and Manners: Occasional Prose. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1970.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Aquilo que Deus nos dá


Em minha forma de pensar, a única coisa que me impede de tonar-me uma escritora regional é ser católica, e a única coisa que me impede de ser uma escritora católica (em sentido estreito) é ser sulista. Mas o elemento religioso é, em grande medida, ignorado.

Para Andrew Lytle, 15 de setembro de 1955.


A um professor de Notre Dame:

O silêncio da crítica católica com grande frequência é preferível a sua atenção. Sempre olho nas revistas católicas que minha mãe lê se meu livro foi resenhado e, quando percebo que não o foi, dou graças a Deus. Não deveria ser assim e, no meu caso, a ironia da recepção silenciosa de minha obra pelos católicos é o fato de que escrevo como escrevo justamente porque sou católica. Desconfio de que, se não fosse católica, não teria razão para escrever, nem para ver, nem mesmo para horrorizar-me ou para deleitar-me em algo. Nasci católica, na infância frequentei escolas católicas, nunca deixei nem desejei deixar a Igreja. Nunca tive a sensação de que ser católica é uma limitação à liberdade do escritor, mas o exato oposto. A Sra. [Caroline Gordon] Tate contou-me que, depois que se tornou católica, sente que podia usar os olhos e aceitar pela primeira vez aquilo que via; não tinha de criar um universo novo a cada livro, mas podia tomar aquele que já encontrara. Sinto que ser católica permitiu-me que economizasse milhares de anos de aprendizagem da arte da escrita... Não estou muito certa de que o papel do escritor católico é refletir algo além do que ele vê da melhor maneira possível; mas a questão do que é e do que não é um romance católico é algo que sempre evito. Por fim, escrevemos o que podemos, aquilo que Deus nos dá.

Para John Lynch, 6 de novembro de 1955.


Outro dia [minha mãe] perguntou-me por que não tento escrever algo de que as pessoas gostem em vez de escrever o tipo de coisas que escrevo. Achas, ela disse, que realmente estás fazendo bom uso do talento que Deus te deu quando não escreves algo de que muitas, MUITAS pessoas gostem? Isso sempre me deixa abalada e sem palavras, aumenta minha pressão arterial, etc. Tudo que posso dizer é – se necessário perguntar –: você nunca saberá.

Para Cecil Dawkins, 3 de abril de 1959.

Flannery O'Connor, Spiritual Writings. New York: Orbis Books, 2011, p. 126-27.